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Já faz algum tempo que o termo responsabilidade social está na “moda” e faz parte do vocabulário das grandes empresas. Mas será que ela é realmente praticada? O tema vem sendo bastante discutido por conta da ISO 26000 – a norma da responsabilidade social -, que deve ser publicada em dezembro deste ano. O documento será finalizado de 15 a 21 de maio em uma reunião em Copenhague, na Dinamarca. O jornalista e associado do Idec Wilson da Costa Bueno falou à REVISTA DO IDEC sobre este e outros assuntos.
Além de escrever artigos para diversos veículos, editar sete sites temáticos em comunicação e manter o blog www.blogdowilson.com.br atualizado, Wilson Bueno também leciona na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), em cujo campus concedeu esta entrevista, e é professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP).
Também é autor de alguns livros nas áreas do jornalismo especializado em que atua (científico, ambiental, em saúde e em agronegócio).
Sem papas na língua, Wilson citou empresas que mais falam do que fazem e criticou colegas de profissão que parecem ter esquecido como fazer bom jornalismo.
Idec: Os termos responsabilidade social e marketing social estão cada dia mais presentes no discurso das empresas. Qual a diferença entre eles? Eles também estão presentes na prática das empresas?
Wilson da Costa Bueno: As empresas costumam confundir as duas coisas, tanto no discurso quanto na prática. Elas insistem em se proclamar socialmente responsáveis, mas na verdade estão desvirtuando o conceito, praticando ações pontuais para tentar se caracterizar em sua totalidade. E eu diria que nem é por desconhecimento, é voluntário, para aparecerem bem na foto. Isso acontece em alguns setores específicos, por exemplo, na indústria agroquímica, de mineração, de papel e celulose, tabagista e da saúde. Há uma diferença essencial entre responsabilidade social e marketing social. No marketing a intenção é explicitamente mercadológica, e do ponto de vista prático pouca coisa remete à comunidade. Passado o interesse em fortalecer a marca ou em ter um resultado qualquer, as empresas abrem mão dele, muitas vezes deixando profissionais ao relento. Ação pontual todo mundo pratica, até traficantes e políticos corruptos praticam boas ações. Do meu ponto de vista é necessário recuperar a totalidade e não apenas focar em coisas pontuais, como o McDonald´s, que inventou o McDia Feliz, mas continua contribuindo para a obesidade infantil, manipulando a consciência de jovens e crianças. As empresas tentam escapar com a doação de parte da receita. Já responsabilidade social seria um compromisso de gestão, de filosofia de negócios, e não uma ação pontual. Ações pontuais não devem ser confundidas com o conceito mais amplo e autêntico de responsabilidade social.
Idec: A responsabilidade social entrou em cena pela “porta” da questão ambiental, sobretudo nesta última década. O que você acha que terá mais destaque agora? Ou a questão ambiental ainda predominará por muito tempo?
WCB: Tem havido a valorização de outro conceito, parece que mais abrangente, que é a sustentabilidade. É normal encontrar nos portais das grandes corporações o menu [link] sustentabilidade, dentro do qual está o de responsabilidade social. Por terem avacalhado o conceito e todo mundo ter virado socialmente responsável, isso não serve como diferencial. Sustentabilidade engloba responsabilidade social, responsabilidade ambiental e responsabilidade do ponto de vista econômico.
Idec: Existem muitos exemplos de marketing verde falsos, que colocam em risco a ideia de responsabilidade social. É possível fazer marketing social sem falsidade?
WCB: É possível, mas não tem sido essa a prática das grandes corporações, como McDonald´s, Nestlé, Monsanto, Syngenta e Souza Cruz, que nem podem ser socialmente responsáveis porque, por essência, são predadoras. A indústria agroquímica não pode ser socialmente responsável porque sua essência é fazer as pessoas usarem veneno, além de emporcalhar a água e o solo. A Souza Cruz pode fazer o que quiser, mas nunca vai conseguir eliminar sua essência, que é fazer as pessoas fumarem e morrerem ou terem doenças devido ao consumo de cigarro. É preciso ficar atento às ações de marketing social porque elas podem ser, no mínimo, safadas. Imagine uma universidade que, só porque diminui a mensalidade, diz que está praticando responsabilidade social, quando a gente sabe que tem vaga pra burro sobrando. Essas ações sociais ou ambientais são, na verdade, meras tentativas de manipulação.
Idec: Você cita muitos cases de empresas que se autoproclamam socialmente responsáveis ou que são premiadas por serem consideradas as melhores para se trabalhar. Como o consumidor pode reconhecer as empresas verdadeiramente responsáveis?
WCB: Algumas acabam sendo facilmente desmascaradas porque fazem coisas que ficam evidentes. Outras não, por exemplo, as que ganham prêmios e constroem seus cases a partir de agências e assessorias. Um case importante que eu denunciei na época foi o da Merck, quando fez o recall do Vioxx – um remédio que ela sabia que podia matar (e matou milhares de pessoas). Quando ela fez o recall, apareceu como uma empresa legal com os consumidores, porque estava tomando a iniciativa de recolher o medicamento. E ela fez todo o esforço, inclusive no Brasil, para apagar todos os rastros, recolher as caixas, deu pista para que os médicos sumissem com os receituários. Aqui no Brasil quase não sobrou gente para processá-la pelos danos que causou, mas lá fora ela teve um problema enorme. Veja as montadoras que fazem recall e jogam o problema no colo dos consumidores. No caso do Stilo, da Fiat, ou do Fox, da Volkswagen, as empresas lesaram o consumidor e depois levam do governo uma multa irrisória. Percebo que isso acontece com muita facilidade porque a legislação é muito frouxa e há cumplicidade do governo com as empresas, que fazem coisas que não fariam em países desenvolvidos. O cubo da roda do Stilo na Europa é de aço e aqui é de ferro fundido, e é por isso que quebra. O banco traseiro do Fox lá fora não tem o mesmo problema que aqui porque as empresas sabem quanto custaria o dedinho de um alemão ou de um americano. Há agroquímicos que são proibidos lá fora e são vendidos aqui porque elas sabem que vai doer muito menos no bolso. Ás vezes, vale a pena pagar a multa, cujo valor é incluído pelos laboratórios nas campanhas publicitárias. Então, uma campanha de 5 milhões fica em 5 milhões e 200 mil, esses 200 mil são a multa. Se a multa fosse de 10 milhões, certamente não fariam isso. A legislação, a cumplicidade e o lobby dessas empresas fazem com que elas se sintam em terreno favorável.
Idec: Você acha que a ISO 26000, que deve ser concluída ainda este ano, vai ajudar na apuração e até na implementação da responsabilidade social das empresas?
WCB: Acho que apesar de os selos da ISO existirem, o panorama não mudou. As empresas continuam fazendo o que querem, e algumas a gente nem imagina como conseguiram esses selinhos, porque são empresas essencialmente predadoras. Sou um pouco descrente, meio cético. Acho que o debate é importante, mas na prática muitas empresas que têm o selo ISO não o merece. A ISO não garante muita coisa, pois parece que todo mundo tem.
Idec: Temos visto que o número de recalls aumentou. Isso significa uma vigilância maior e um sistema de notificação um pouco mais organizado?
WCB: O fato de as empresas estarem promovendo recalls não significa que estejam controlando a qualidade e a excelência da produção. Não é possível que em um século elas não tenham aprendido a fazer carros. Nesta época em que temos recorde de produção de automóveis e concorrência cerrada, as empresas estão cuidando menos do processo de fabricação. Acho que estão ocorrendo recalls demais em todas as montadoras, até em empresas mais responsáveis, como a Toyota e a Volvo, que vende a ideia de segurança. Estão todas sob suspeita, e no Brasil o desmando é grande porque a cobrança do consumidor ainda é menor do que deveria. É muito fácil colocar anúncio de um quarto de página dizendo que 400 mil pessoas devem procurar a concessionária e agendar o conserto para os próximos três meses. Enquanto isso, o consumidor fica com um carro perigoso. Isso é maluco!
Idec: Algumas empresas já perceberam que para controlar sua imagem e reputação não basta apenas comandar a grande imprensa, também é preciso intervir nas chamadas redes sociais, como Facebook, Orkut, Twitter. O que você acha que mudará no futuro: as empresas, as redes sociais ou há uma terceira alternativa?
WCB: Talvez existam outras alternativas dentro das redes sociais, mas acho que, de qualquer forma, temos evoluído para um cenário no qual o controle das empresas é menor, e por isso as informações sobre desmandos e abusos vazam mais. Escrevi um artigo com a ideia de mostrar que as empresas ainda não têm a cultura de dialogar nas redes sociais. Elas tentam fazer pressão, chantagem, cooptar pessoas que são protagonistas na rede, mas não têm a cultura da interação, do diálogo, da transparência. Mas acho que já houve uma mudança importante. Quando havia uns poucos jornaloides que dominavam o mercado da comunicação, era fácil os anunciantes usarem isso como tapa-boca. Hoje, eles até continuam fazendo isso, mas o número de alternativas para expressão em blogs e nas redes em si é maior, e sendo maior fica mais difícil controlar e silenciar todo mundo. Portanto, a tendência são os abusos aparecerem com mais frequência, e as empresas sabem que isso causa um impacto brutal em sua imagem e reputação. As empresas estão usando uma tática antiga que é tentar identificar os adversários para ver se conseguem silenciá-los. É mais fácil para elas fazer isso que mudar de postura. Mas como acho que não vai funcionar, algumas vão ter que mudar. As redes sociais trazem um cenário diferente – de pluralismo e de não controle. Suborno, propina e amizade com os grandes monopólios de comunicação garantiam tudo. Hoje, o controle é menor porque não se consegue comprar todos os blogueiros e twitteiros.Idec: O que é interessante na internet é o jogo de esconde-esconde, porque você não consegue ver o tamanho do outro…
WCB: As empresas estão assustadas com isso, porque elas não têm controle, mas isso é bom. Vou dar um exemplo: há alguns anos eu recebia repetidamente na minha caixa de correio o folhetinho de responsabilidade social da Souza Cruz. Eu ficava profundamente irritado, porque eu tenho plena consciência de que a indústria tabagista nunca será socialmente responsável, já que a essência dela é vender um produto que mata as pessoas. Eu escrevi vários artigos sobre a responsabilidade social da indústria tabagista. Se você entrar no Google e digitar responsabilidade social da indústria tabagista, a Souza Cruz e a Philipp Morris não aparecem. É uma forma que a gente tem de mostrar uma outra posição que não é, necessariamente, aquela hegemônica que ela conseguiu controlando monopólios da comunicação. Isso é um dado importante. Nesse espaço [na internet] as empresas estão em desvantagem e isso é bom porque antigamente eu teria que contar com o apoio do Estadão ou da Folha. Mas eu vejo um problema: quem patrocina os cursos de formação de jornalistas do Estadão e da Folha hoje são Odebrecht, Philip Morris, Syngenta e Oi. Há uma hipocrisia, um cinismo dos grandes conglomerados de comunicação, porque, embora eles digam uma coisa no editorial, eles fazem outro jogo no departamento comercial. Os cursos para formação de jornalista do Estadão e da Folha são exemplos disso. Os parceiros são os menos éticos possíveis.
Idec: O consumo consciente depende não apenas de informação qualificada, mas de informação articulada. Onde o consumidor deve buscá-las?
WCB: No caso do Brasil, na autorregulação, mas não acho razoável imaginar que o setor de alimentos, por exemplo, vá regular a propaganda de alimentos. Tenho restrições ao próprio Conar [Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária], pois acho que ele só toma medidas eficazes quando há pressão social. O ideal seria fortalecer as entidades independentes, que são poucas no Brasil. Sou adepto ideológico do Idec, porque sua independência em relação às empresas permite que ele possa avaliar e denunciar. O Conar pode tomar uma decisão, mas pode demorar o suficiente para a propaganda sair do ar. Isso não aconteceu com a Schincariol [no caso da propaganda da cerveja Devassa Bem Loura], mas certamente ocorre com a Ambev, com a qual o Conar é mais tolerante. Não acredito na autorregulação, creio que a sociedade tem de estar vigilante a partir de entidades independentes que possam monitorar as propagandas o tempo todo. A autorregulação é hipocrisia. Já que o governo é fraco, acho que essas entidades independentes é que podem alertar a população e conscientizá-la, além de encaminhar propostas de luta.
Idec: Como você vê o fato de alguns temas sensíveis e ainda bastante desconhecidos, como transgênicos e nanotecnologia, serem abordados na imprensa como algo positivo?
WCB: Fico profundamente irritado com o fato de, no Brasil, os estudos sobre as vantagens dos transgênicos serem feitos sempre pela mesma empresa – a Céleres. Se você entrar no site, entre seus clientes estão todas as empresas de biotecnologia (Du Pont, Monsanto, Syngenta…). E a imprensa continua divulgando os estudos da Céleres como se fossem isentos. Esses estudos são completamente viciados, no mínimo suspeitos. E a imprensa é pouco investigativa, come nas mãos deles. Esses temas controvertidos acabam tendo uma única fonte, que são os executivos das empresas, não há debate com a sociedade, não há a presença de fontes contrárias. A imprensa brasileira está sendo pautada pelas empresas, e aí, evidentemente, compramos gato por lebre, sobretudo em alguns setores, como biotecnologia, nanotecnologia, agroquímico e saúde, o que é uma vergonha, um escândalo. Há total falta de espírito crítico por parte da imprensa brasileira, com raríssimas exceções. Tivemos recentemente uma decisão que condenou a Shell e a Basf a pagar as despesas médicas de funcionários (e de seus filhos) de uma unidade de agrotóxicos em Paulínia [cidade do interior de São Paulo]. Nenhum jornal deu a notícia [pelo menos até a realização desta entrevista, no início de abril]. Eu ouvi na CBN. E sabe por que eles não deram? Por falta de interesse. Não é nem problema de anúncio, porque essas empresas nem sempre são grandes anunciantes da mídia impressa. É falta de vergonha na cara e de capacidade de investigação. Os jornalistas ficam à mercê das notícias que chegam às redações e não vão buscá-las na rua. Isso é péssimo para nós porque o interesse público está sendo deixado em segundo plano.
Idec: É preguiça ou má formação dos jornalistas?
WCB: Eu acho que é preguiça, pois ficam com a bunda na cadeira. Ficam a reboque dos espetáculos e das tragédias, como a do Rio de Janeiro [os desmoronamentos que ocorreram em função das fortes chuvas no mês de abril]. Esses fatos precisam ser cobertos, claro, mas tem coisa acontecendo do nosso lado que estamos deixando de comentar. Até algo positivo, como essas empresas que foram condenadas pela Justiça [Shell e Basf].
As empresas de transgênicos, por exemplo, usam o argumento que a resistência a elas vem das empresas de agrotòxicos, mas a mesma empresa que produz transgênicos, produz agrotóxicos. Portanto, esse argumento é idiota, mas a imprensa o publica sem questionar, sem perguntar qual é a empresa de agrotóxico que provoca resistência. Falta senso crítico. Por isso acho que o nosso papel como cidadão é denunciar, é botar a boca no trombone, é incentivar o uso das redes sociais para esse trabalho de enfrentamento e valorizar as entidades independentes. Não dá para depender das empresas e do sistema de autorregulação.
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